Depois de se valer de elementos textuais provenientes de rótulos e embalagens de produtos industrializados, em naturezas-mortas e colagens, Mira iniciou um importante capítulo em sua trajetória: a experimentação de relações entre a palavra e o espaço. A artista passou a produzir desenhos em que letras, signos gráficos e garatujas estruturavam composições espaciais. Repetição de gestos que se assemelhavam a caligrafias ou letras diminutas em amplos espaços vazios são procedimentos característicos desses trabalhos em que a artista usou nanquim, carvão e a técnica da monotipia, evidenciando uma espécie de escritura coreográfica, criando oportunidades para que o público acompanhe o ofício da mão que confabulou esses rastros no suporte. Formas circulares e elípticas produzidas repetidamente, rabiscos velozes em muitas direções, manchas e traços misturados a letras dão a ver uma escritura gestual que transborda a legibilidade – uma escrita sem leis rígidas, com traços entremeados como se pudessem atravessar o suporte por meio do fluxo de um desenho que é um tanto escrita ou de uma escrita que se faz como desenho. Haroldo de Campos, experimentador e pensador da poesia concreta, traduziu em uma poesia-constelação a “arte-escritura” de Mira, em que o signo gráfico é, para a artista, matéria, questão estética e fabulação de espaços.
After incorporating textual elements from labels and packaging of industrialized products into her still lifes and collages, Mira embarked on an important chapter of her career: experimenting with the relationships between words and space. The artist began producing drawings where letters, graphic signs, and scribbles structured spatial compositions. Repetition of gestures resembling calligraphy or tiny letters across vast empty spaces became characteristic of these works, in which the artist used ink, charcoal, and monotype, revealing a kind of choreographic writing, creating opportunities for the public to follow the hand’s craft as it conjured these traces on the surface. Repeated circular and elliptical forms, rapid scribbles in various directions, stains, and strokes interwoven with letters reveal a gestural writing that transcends legibility – a writing without rigid rules, with marks interlaced as if they could traverse the surface through the flow of a drawing that is somewhat writing or a writing that becomes drawing. Haroldo de Campos, an experimenter and thinker of Concrete Poetry, translated Mira’s “art-writing” into a constellation-poem, where the graphic sign, for the artist, is material, an aesthetic concern, and a fabrication of spaces.
uma arte de vazios
onde a extrema redundância começa a gerar informação original
uma arte de palavras e de quase palavras
onde o signo gráfico veste e desveste vela e desvela
súbitos valôres semânticos
uma arte de alfabetos constelados
de letras-abelhas enxameadas ou solitárias
a-b-(li)-aa
onde o dígito dispersa seus avatares
num transformismo que visa ao ideograma de si mesmo
que força o digital a converter-se em analógico
uma arte de linhas que se precipitam
e se confrontam por mínimos vertiginosos de espaço
sem embargo habitados por distâncias insondáveis
de anos-luz
uma arte onde a côr pode ser o nome da côr
e a figura o comentário da figura
para que entre significante e significado
circule outra vez a surprêsa
uma arte-escritura
de cósmica poeira de palavras
uma semiótica arte de ícones índices símbolos
que deixa no branco da página seu rastro numinoso
esta a arte de mira schendel
entrar no planetarium onde suas composições
se suspendem desenhos estelares
e ouvir o silêncio como um pássaro de avessos
sôbre um ramo de apenas
gorgear seus haicais absolutos
haroldo de campos
abril de 66
mira schendel
MAM do rio de janeiro · maio 66
an art of voids
where extreme redundancy begins to generate original information
an art of words and almost-words
where the graphic sign dresses and undresses, veils and unveils
sudden semantic values
an art of constellated alphabets
of bee-like letters, swarming or solitary
b-e-e
where the digit scatters its avatars
in a transformism aiming at the ideogram of itself
forcing the digital to convert into analog
an art of lines that rush forward
and confront each other in vertiginous, minimal spaces
yet inhabited by unfathomable distances
of light years
an art where color can be the name of color
and figure the commentary of figure
so that between signifier and signified
surprise circulates once more
an art-writing
of cosmic dust of words
a semiotic art of icons, indices, symbols
that leaves its numinous trace on the white of the page
this is the art of mira schendel
to enter the planetarium where her compositions
suspend like stellar drawings
and to hear silence like a bird inside out
on a branch of only
warbling its absolute haikus
haroldo de campos
april 66
mira schendel
MAM of rio de janeiro · may 66