4

Arte: encontro com o corpóreo

Art: an encounter with the corporeal

Mesmo expulsa da faculdade de filosofia na Itália, quando jovem, Mira Schendel seguiu se dedicando a leituras filosóficas e teosóficas. A artista usufruía de trocas com pensadores como Vilém Flusser, Haroldo de Campos, Mário Schenberg e Hermann Schmitz, entre outros, enquanto experimentava em seu trabalho questões relacionadas ao signo, à sua mediação e à compreensão da arte como um fenômeno – um acontecimento disponível no cotidiano que reverbera em múltiplas dimensões do corpo e da existência. Durante os anos 1970, Mira dedicou-se especialmente à fenomenologia de Hermann Schmitz, que se orienta pela ideia de corporeidade e de que signos animam a potência das experiências. No mesmo período, ela retomou um recurso usual no seu ofício do desenho gráfico: o uso de letras impressas transferíveis a seco para a superfície do papel e do acrílico, conhecidas pelo nome de letraset. As letras somaram-se assim à grafia manual, ao uso eventual de máscaras de estêncil e, mais tarde, à datilografia das máquinas de escrever, no repertório de signos da artista. Devido ao caráter mecanizado desse recurso, sua atenção concentrou-se nas relações posicionais de sinais gráficos reconhecíveis dentro do campo da imagem. Em cada Toquinho feito sobre papel de arroz, pequenos recortes de papel tingido encontram-se com uma ou algumas letras transferidas a seco. Já nos Toquinhos feitos em acrílico, cada diminuto paralelogramo recebe a impressão direta dessas letras. As distâncias e os vazios se tornam a matéria mesma que sustenta a obra em relação a seu espaço interior e exterior.

Even after being expelled from the philosophy school in Italy as a young woman, Mira Schendel continued to engage with philosophical and theosophical readings. She maintained intellectual exchanges with thinkers like Vilém Flusser, Haroldo de Campos, Mário Schenberg, and Hermann Schmitz, among others, while exploring in her work issues related to the sign, its mediation, and the understanding of art as a phenomenon – an event that is present in daily life and that reverberates across multiple dimensions of the body and existence. During the 1970s, Mira was particularly drawn to the phenomenology of Hermann Schmitz, which revolves around the concept of corporeality and the idea that signs animate the power of experiences. Around this time, she revisited a resource commonly used in her graphic drawing practice: dry-transfer letters applied to paper or acrylic surfaces, known as instant-lettering or letraset. These letters became part of her repertoire, alongside handwritten text, the occasional use of stencil masks, and later, the typewritten text from typewriters. Due to the mechanized nature of this technique, her focus shifted to the positional relationships of recognizable graphic signs within the image field. In each Toquinho made on rice paper, small pieces of dyed paper intersect with one or more dry-transfer letters. In the Toquinhos made from acrylic, each small parallelogram receives a direct impression of these letters. The distances and voids become the very material that supports the work in relation to its interior and exterior space.


Arte: encontro com o corpóreo

Art: an encounter with the corporeal

Mira Schendel, Depoimento, "Arte no Brasil – Documento/Debate" [Aracy Amaral (ed.), 10º Salão de Arte Contemporânea de Campinas], novembro de 1975. / Mira Schendel, Testimony, "Arte no Brasil – Documento/Debate" [Art in Brazil – Document/Debate] [Aracy Amaral (ed.), 10º Salão de Arte Contemporânea de Campinas], November 1975.

Me foi pedido um depoimento de três laudas, espaço duplo, linha de 70 toques, sobre minha obra no contexto da arte brasileira. O espaço duplo (deixando de lado a para mim misteriosa linha de 70 toques) me levou a lembrar “A sentença fundamental da teoria do espaço”. E o DOCUMENTO/DEBATE, a propôr um debate em vez de tentar um depoimento. Posso errar, mas suponho que o depoimento consistiria – mais ou menos – em contar o que pretendi, o que visei, o que realizei no curso dos anos. Creio que algo assim seria destituído de interesse, tanto para os colegas quanto para os outros participantes. Mais interessante seria, talvez, o que se me foi apresentando ou individuando. E na certa não só a mim. Mais interessante ainda, quem sabe, o que fui encontrando. Próximo ou análogo ao que outros encontraram. Preferiria, portanto, pôr em discussão algo que qualquer um de nós dificilmente poderia julgar distante, acessório ou até supérfluo: a corporeidade humana. E, mais especificamente, a corporeidade “no espelho da arte”.
Vivemos num país no qual há regiões onde, felizmente, este debate careceria de sentido. Onde, apesar do dito espiritismo/animismo, o dualismo antropológico não conseguiu se firmar. Mas há regiões, pelo bem e pelo mal, bastante ocidentalizadas. E onde provavelmente participaremos do destino ocidental. Ajudados, porém, pelo “contexto brasileiro”, se soubermos nos aproveitar dele também temática e reflexivamente. Neste sentido, mais talvez do que em outro, me parece legítimo falar de uma arte brasileira e/ou
latino-americana.
Pelo que sei, coube a Hermann Schmitz da Universidade de Kiel a imensa tarefa de sistematizar dados oferecidos por várias disciplinas e elaborar uma fenomenologia que, diferentemente da do velho estilo (Husserl, Scheler, Heidegger, Sartre) diferentemente (e de sistematizar dados oferecidos diferentemente de Sartre) não seja vítima da exigência de
complementação metafísica. Uma nova fenomenologia cuja peça central é dada pela
corporeidade.
A literatura sobre o “despertar sensorial” aumenta de ano para ano. Sofrendo cada qual, nos grandes centros urbanos, de martírio sensorial. Seja no sentido de excessos, de poluição e, simultânea e paradoxalmente, de privação sensorial.
Facilmente qualquer colega se terá perguntado acerca da poluição visual. E o encontro em Campinas me parece uma feliz tentativa de reduzi-la. Vindo do bombardeio visual da rua, entramos para sofrer de outro (ou do mesmo, parece) em salões e pavilhões repletos de “coisas”: isto é comum.
Seja como for, o “despertar sensorial”, a reeducação sensorial, tornam-se nos grande centros, de domínio público.

Mira Schendel, Depoimento, "Arte no Brasil – Documento/Debate" [Aracy Amaral (ed.), 10º Salão de Arte Contemporânea de Campinas], novembro de 1975. / Mira Schendel, Testimony, "Arte no Brasil – Documento/Debate" [Art in Brazil – Document/Debate] [Aracy Amaral (ed.), 10º Salão de Arte Contemporânea de Campinas], November 1975.

I was asked to provide a three-page statement, double-spaced, with 70 characters per line, about my work in the context of Brazilian art. The double-spacing (not to mention the mysterious 70 characters per line) reminded me of A sentença fundamental da teoria do espaço [The fundamental sentence of space theory] and DOCUMENTO/DEBATE [DOCUMENT/DEBATE], which propose a debate rather than an attempt at a statement. I might be wrong, but I suppose a statement would consist – more or less – of sharing what I intended, aimed for, and accomplished over the years. I believe something like that would be of little interest for both my colleagues and other participants. Perhaps what presented itself to me or became an individual form of expression would be more interesting. And certainly not just for me. Perhaps even more interesting, who knows, would be what I encountered along the way – something close or analogous to what others found. Therefore, I would prefer to put up for discussion something that few would consider distant, peripheral, or even superfluous: human corporeality. And, more specifically, corporeality “in the mirror of art.”
We live in a country where, fortunately, there are regions where this debate would lack meaning – where, despite the so-called spiritism/animism, anthropological dualism has not managed to take root. But there are regions, for better or worse, that are quite Westernized, where we are likely to share the Western fate – helped, however, by the “Brazilian context,” provided we know how to use it thematically and reflectively. In this sense, more so than in others, it seems legitimate to speak of Brazilian and/or Latin American art.
As far as I know, Hermann Schmitz, from the University of Kiel, took on the immense task of systematizing data provided from various disciplines to create a phenomenology that, unlike earlier approaches (Husserl, Scheler, Heidegger, Sartre), does not fall prey to metaphysical supplementation – a new phenomenology, whose core is corporeality.
The literature on “sensory awakening” increases year by year. Each of us, in large urban centers, suffers from sensory martyrdom, whether through excess stimuli, pollution, or – simultaneously and paradoxically – sensory deprivation.
Any colleague will have easily asked themselves about visual pollution. And the meeting in Campinas seems like a fortunate attempt to reduce it. Coming from the visual bombardment of the streets, we then suffer from another (or perhaps the same) one in salons and pavilions filled with “things”: this is all too common.
Nevertheless, “sensory awakening” and sensory re-education are becoming a matter of public domain in large urban centers.